domingo, 18 de julho de 2010

Lírica (170) - Neve

Entrando na etapa da vida que os otimistas chamam de outono e que ele julgava mais adequado definir como inverno, a ocupação dos seus dias - porque nada mais de importante lhe acontecia - era o exercício da recordação. Punha-se a vagar pela infância, pela adolescência e pelos anos que os otimistas classificavam como fase de maturidade e para os quais ele tinha outras palavras: estágio de apodrecimento. Sempre que se dedicava a essas reminiscências, era subjugado por uma agudíssima tristeza. Nesses momentos, por um fiapo de ternura por si mesmo ou talvez por um resto do necessário espírito de sobrevivência, pensava num antigo amor. Seus olhos então se tornavam menos mortiços, um traço de sorriso animava seus lábios e, na sua solidão, antes de tomar o chá, pôr o pijama e se entregar aos pesadelos, ele murmurava: "Fui amado, fui amado..."

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