quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Lírica (950) - O pássaro

Posso enganá-los ainda, por algum tempo. O público me ama, sempre me amou. E os críticos, quem se importa com eles e seu veneno? Dizem que estou decadente, mas seis meses antes de qualquer ópera das quais participo não se encontra mais um ingresso, nem que um rei queira. Quem acredita nos críticos? Sempre foram tolos. Incensaram Caruso, Gigli, Pavarotti e até aquele medíocre Lanza. O processo é sempre o mesmo. Alçam alguém às estrelas, pelo prazer de derrubá-lo depois. Querem fazer isso comigo, agora. Já devem ter algum geniozinho escondido no chapéu, algum rapazola corado pelas gemadas da mamãe, e garantirão que ele é capaz de despedaçar uma taça de cristal com um dó, a trinta metros de distância. Mas terá esse novo gênio o que Caruso, Gigli, Pavarotti e Lanza não tiveram, o que só eu tenho? Terá ele este pássaro aprisionado na garganta, este pássaro que vem sendo a minha glória? Ele está morrendo, eu sei. Já não canta, já não cantamos como antes. Foram os seis meses naquele manicômio de quartos gelados, aqueles maus-tratos. Quase morremos ali, eu e meu pássaro querido. Quando saímos, não éramos os mesmos. Mas disso apenas eu e meu pássaro sabemos. Conhecemos nosso destino. Não está distante a noite em que ele morrerá na minha garganta no momento do agudo mais agudo. O público ficará estupefato: será a primeira vez que o grande Enzo não alcançará a nota! Quando essa malfadada noite vier, não deixarei que os críticos zombem de mim e instiguem a plateia a vaiar. Morrerei com meu pássaro, com ele se debatendo nesta garganta que será celebrada enquanto houver ópera no mundo.

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