domingo, 5 de agosto de 2012

A epidemia do amor

Como, depois de morto e autopsiado, o homem continuava a suspirar de amor, o legista julgou necessário alertar as autoridades. O secretário da Saúde elogiou seu zelo e lhe determinou que não relatasse a ocorrência a ninguém, especialmente aos jornalistas, que logo transformariam o caso em epidemia, ainda mais se soubessem que situação idêntica havia sido registrada naquele mesmo dia, em um município vizinho: uma mulher que, também morta e autopsiada, insistia em murmurar frases de amor. O legista prometeu silêncio absoluto, embora não conseguisse imaginar como os parentes dos mortos, quando os corpos fossem liberados, poderiam ignorar os suspiros do homem e os murmúrios da mulher. Estava pensando nisso quando o secretário da Saúde lhe perguntou se o exame pericial havia revelado a causa da morte do homem. O legista, depois de hesitar, tamanha era a dimensão do absurdo, revelou que tinha encontrado no estômago restos de no mínimo cinco rosas. O secretário não se impressionou, porque o mesmo havia sido achado na autópsia da mulher. O legista disse que o último caso de semelhante anomalia tinha sido relatado em 1942. O secretário comentou que as doenças conhecidas popularmente como traiçoeiras eram assim. Sumiam e, quando já não se esperava, retornavam. O amor não era uma exceção. O legista disse que infelizmente era assim mesmo, mas que se espantava porque desde 1942, data da última manifestação da doença, as rosas estavam extintas em todo o Estado, justamente para evitar suicídios por ingestão de rosas. Onde os dois, o homem e a mulher, as haviam encontrado? O secretário, que parecia estar bem informado sobre o assunto, disse que os adoradores da seita do amor eram conhecidos no passado por sua engenhosidade e, embora sobre o último caso tivesse se passado mais de meio século, convinha manter toda a cautela, acrescentando que, embora de maneira discreta, havia posto toda sua equipe de prontidão. Desligado o telefone, o legista foi tentado a matar o morto, como se fosse possível, porque seus suspiros amorosos haviam se tornado mais altos, mais patéticos e capazes de enternecer até um homem como ele, habituado a lidar diariamente com sangue, vísceras e órgãos dilacerados.

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