sábado, 26 de outubro de 2013

E surge inevitavelmente

E surge inevitavelmente a hora em que, apesar de todos os nossos possíveis bons propósitos, precisamos reconhecer, se quisermos dizer a verdade, que nosso dia foi ruim, funesto, desgraçadamente triste. Nem nos consola o fato de saber que ele veio na medida certa de nosso merecimento. Nos mantivemos fechados em casa, diante do micro, para conservar nossa aura de escritor. Não olhamos para a rua, não vimos se fez sol ou se choveu. Ouvimos um menino gritar não me bate, tio, mas não nos debruçamos na janela. O que extrairíamos disso? Elevados são nossos desígnios, e a vida é uma preocupação secundária. Tudo está nos livros e os livros estão bem perto de nós. Escrevemos hoje, como fazemos todos os dias, é verdade, e chegamos à concessão de falar do amor. Usamos, como sempre, nossos melhores adjetivos e as metáforas que aprendemos com os maiores poetas. Nosso estilo fluiu, parece-nos que escrevemos cada vez com mais segurança. Mas agora, na hora de baixar a tampa do notebook, nos vem aquela pontada aguda, aquele remorso. Por que não fomos olhar o menino que gritava não me bate, tio? Hora de nos entregarmos àquilo que por eufemismo chamamos de sono, aquelas horas que começarão a se estender morosamente até o primeiro misericordioso raio de sol. Talvez amanhã aprendamos um modo melhor de falar da vida e do amor. É possível que enfim nos convençamos de que para falar melhor dela, e dele, será interessante ir à janela se um menino gritar na rua não me bate, tio, eu não fiz nada.

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