terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Crueldade (fevereiro de 2011)

Na saída do metrô
vi o homem
na cadeira de rodas
vendendo rifas
de automóvel

Era um desses dias
em que fica mais fácil
acreditar em Deus

O sol jogava para o alto
suas moedas amarelas
e a tarde as recolhia
na sua saia azul
e ia separando
o trigo aqui
o ouro ali
o trigo aqui
o ouro ali

Ao lado do homem
na cadeira de rodas
uma mulher vendia cocada
e em torno dela
zumbiam abelhas embriagadas
enquanto um sorveteiro
oferecia seus palitos
de chocolate
coco e abacaxi

Repentinamente
o portão do colégio
se abriu como
uma barragem derrubada
e um enlouquecido
bando de meninos
saiu para o sol
para a tarde
para o trigo
para o ouro
para a cocada
para o chocolate
o coco e o abacaxi

Ninguém
correu para o homem
na cadeira de rodas
ninguém queria saber
daqueles papéis
com aquela foto desfocada
daquela van avariada
que ele queria vender

Era cruel aquilo

Era como se
o homem
na cadeira de rodas
estivesse ali
só para ser a exceção
à alegria
e o contraste
à correria

Apiedei-me dele
e pensei
como diante daquilo
eram ridículas
e até infames
minhas lágrimas
minha dor
minhas lamúrias de amor

Parei
e pensei em
comprar um
papel daqueles
uma das rifas
que ele segurava
e sem esperança
apregoava

Mas logo
me afastei dele
comprei uma cocada
e procurei andar
com ostentação
para que ele sentisse
que não poder andar
era de todas
a pior privação

Ele que se danasse
que se estuporasse
com suas rifas
e a cadeira de rodas

Sabia ele
que um ano antes eu
flutuava por aquela
e por outras tantas
ruas desta cidade?

Poderia ele
ao menos imaginar
que um ano antes
enfeitiçado pelo amor
eu não precisava
destas pernas miseráveis
sabia ele
que eu não precisava andar
porque era capaz de voar
e voava?

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